Despedaço
Sentiu-se cuspida pela vida
Foi a palmada ou a água fria
Azulada pelo tempo morria... morria...
E morta renascendo sempre
Socorrida, soluçava, sobrevivia.
Nem bem chegou já foi embora
Era hora, não se espera muito nesse canto do mundo
Mãe tem pressa.
O oceano mora longe e a vista é cinza
Não trouxe brisa, trouxe ventania
Sol quente, cabeça de gente.
E de bruxa se banhou na lua cheia
Com sapos, chorumelas e bacias
De casta a maneirice e a crença
De puta o requebrado e a malícia.
Fedor etílico e gosto de barba
Abusada pelo tio, gosto de nada
Gosto de solidão.
Foi crescendo, devendo à vida
Pagou como podia
Com fuligem, cara de festa e repugnância.
Feito moça se escondia
Feito onça era pequena
Feito menina
Feito ela
Feito eu
Feito você.
Abusada. Esquecia.
Apagava. A memória nunca vai.
A memória sempre vem.
Regressa. Vagabunda!
E seus peitinhos apontavam para o norte
Porque norte e morte rimam
Natimorta!
Natimorta!
Desceu a rubra tinta por suas pernas
Desceu a mulher que ali jazia
Amargurada. Bruxa! Enjaulada nas tramas
Tramas metidas. Metia, metia...
E de meter aos montes já nem se sabia
Sonhava e se confundia
Com grossos pintos, grossas línguas
No pensamento. Na vida.
Fugiu de casa
Foi pro inferno
Conheceu o céu e de lá caiu
Era a vodca...
Era o éter...
Era a hipocondria.
Sua alma foi arrancada
Sepultada no firmamento
Sangrava, sangrava
Choviam pingos, pipas e trevas
Respingava mel nos parabrisas
Enlouquecia
Cortava os pulsos
Dormia... dormia...
Pela manhã fez um juramento
Pagaria com seu cabelo.
“ - Sem ópio, sem acordo então!”
“- Bem que eu tentei, Senhor!” – Ela disse.
Ingrata.
Há de pagar com a vida!
Que vida?
Migalhas.
Deu de ombros, nunca estivera tão fodida.
No bolso um preservativo
Gastar, né?
Guardar pra quê?
Assim se fodia... fodia...
A culpa lhe devorava
O medo era indiferente
Perdia dentes, cabelos.
Perdia amigos, dignidade.
O que mais perdia era a si mesma.
Refém. Omissa.
Submetia-se a todos. A tudo.
Menos ao que queria.
Caiu em si uma vez.
Quebrou duas costelas
Fraturou a honra
Trocou de homem.
Mudou do rico para o pobre
Do bonito para o feio
E achou alguma sorte menos manca.
Olhou-se no espelho
E até conseguiu achar algum sentido
Parecia menos feia de repente
Algo luzia.
Rebento rebentou sua barriga
Suas carnes antes duras feneciam
Experimentou amor e ódio
Medo, pranto e solidão
Nada de novo, nada de especial.
Largou menino numa esquina mijada
Madrugada vaporosa e úmida.
Correu! Arfou!
E pela primeira vez se deu conta que sorria.
Arroxeada por um golpe traiçoeiro
O pobre, coxo e feio reagia
“Não se abandona um filho”
“- Quem te disse? A vida é minha!”
Cozinhava toda madrugada.
Na panela de pressão fervia fetos.
Durante o dia os devorava nas esquinas mijadas.
Seus restos, seus dejetos!
A louca, a bruxa, a puta
Assumira seu papel de ratazana
Da sua boca espumava pegajoso escárnio
Amargo. Destino!
Quando foi que me perdi, Virgem Maria?
A Santa não intercede por mim?
Já nasci vomitada pela vida
Socorro! Socorro!
Ai de mim!
Nossa Senhora escutou seu berro
Que do inferno a tudo estremecia
Dá-me sua mão, filha querida!
Que mãos eu tenho, Senhora minha?
Passou por ali um corvo grande
No bico um cesto com a criança
“- Estorvo!” – Gritou.
“- Por sua razão estou aqui!”
Na genitália o capeta colocou uma pereba ardida
E na barriga um buraco a devorava
“- Suplico, Senhor! Misericórdia!”
Os anjos de pronto vieram.
- “A vida, o céu, é o que quero!”
Modesta.
- “Merece?”
“- Não. Mas faço um trato.
Que ao céu eu suba e que meu filho desça.
Troquemos. Ele não tem pecado, aqui não vai sofrer como eu.”
Estupefata ouviu um “sim” como resposta.
Um teste. Aceito.
Ao céu foi levada, mas levou consigo o inferno.
Quando viu seu rebentinho descendo
Por ela. Por ela...
Acreditando-se curada
Sentiu a brisa do paraíso
Tudo era belo
Tudo aconchegava.
Recostou sua fronte cansada
Num arbusto grande,
Pensando ter chegado a um bom final.
Ao adormecer corvos lhe traziam fetos
Na panela pressão os cozinhava
E os devorava nas esquinas mijadas.
Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 27/09/2020