No circo, Maria se dependura, parece pena, parece pluma. Enfeita o arco que gira sobre as cabeças estupefatas. Ela nem se despenteia, seus olhos brilham sob a penugem cintilante dos cílios falsos, cada um possui nas extemidades um detalhe cor de sangue, e enfeitiçam meus olhos de apaixonado.
Maria nem sabe que estou ali embaixo de seu corpo, que gira freneticamente ao som de Amarcord. Ela sorri com sua boca carnuda e jovial, distribuindo cintilância e graça aos cirquemaníacos e aos eventuais visitantes.
Com os joelhos flexionados, em posição minuciosamente calculada e elegante, ela movimenta delicadamente as mãos atirando beijos para quem os capturar no ar. Seu collant prateado brilha mais do que os diamantes, enquanto um facho de luz azulada vai colorindo sua silhueta, tão bonita, que me cega de encantamento.
As piruetas perigosas fazem meu coração pular, tenho medo de que um descuido qualquer furte de Maria a vida, e de mim a possibilidade. Estou completamente perplexo por aquela mulher-ave, mulher-fada, mulher-inteira, eu não a quero pelas metades, a quero sobre minha cabeça, enlouquecendo-a definitivamente.
Enquanto o bambolê que suspende Maria gira, meu mundo gira simbioticamente, num emaranhado de Marias distorcidas e astigmáticas, prevendo que meu fim está perto, pois não há vida em um amor tão abstrato. Eu giro na cadência de Maria, tão grave quanto a tontura de sua cabeça embriagada, tão adoidado quanto seu fôlego curto.
Ela não sabe que eu, mulato, forte e enigmático, ali estou embriagado, carregado de ofertas vãs e promessas que não verbalizarei. Sou forte, mas sou covarde! O que Maria faria se eu lhe falasse, após seus rodopios, que a faria bailar na brisa úmida e quente do mar? O que faria se eu lhe prometesse um rodopio apertado, em meio ao beijo, em qualquer jardim pelo mundo? Ah... Maria é tão segura, tão altiva, tão mulher!
E enquanto seu bambolê vai descendo, as nuances de azul vão lhe revelando o rosto sangrento de cansaço, o brilho na testa, a ofegância e a elegância de Maria me fazem perder o rumo, me fazem acreditar que não há colibri mais leve que ela, não há brilho mais brilhante que ela, não há anjo mais angelical que a minha Maria.
Então percebo que ela não é minha. É do circo. É do mundo. E enquanto houver mundo, lá estarei aplaudindo Maria até que um dia ela me note.
Maria do circo morre de queda, num dia em que o palco escurece pela dor da pancada e pela cor carmesim que embota o picadeiro.
Do livro: Como morrem as Marias