× Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Cyntia Pinheiro
Uma mulher subiu na mesa do bar e fez da saia um disco voador
Textos
Só mais um...
Só mais um


Menino nasceu na privada
Cordão lhe apertava a goela
Arroxeava. Morria.

Em meio a papéis usados
Mijo, fezes, baratas
A mulher o encontrou moribundo
Sorte? Sorte seria a morte!

Não era para ter chegado
Não foi quisto, nem bem, nem mal
Abandonado desde o sêmen
Cuspido na perna, na porta, no canto do muro suburbano

Por um azar não pôde ser tirado
Nem valeu pra ser partido pelo ferro,
Pela pastilha, pelo líquido.
Nada o matava. Vampiro maldito!

Mas as tentativas derrotaram seus membros
Pernas deformadas, coxo!
Olhos cegos!
Veio morrer um pouco por dia
É a melhor morte: Saboreada.

Na mendicância, no anonimato.
Seguia, seguia...

Estúpida noite, gelava suas perninhas abandonadas, nem uma viv'alma lhe cobria.

Um pão na lata de lixo
Banquete podre. Servia!
Um gole de esgoto.
Uma facada era tudo o que queria.

"- Nem pra morrer eu sirvo, maldita sorte! Maldita morte! Que fiz? Que fiz?"

Nem uma puta lhe fazia caridade.
Era invisível como tudo o que não via.
Seus olhos enlameados,
Choraram leite materno,
Pingando fel até no inferno.

Ouviu falar de um tal Jesus Cristo
Que curava, perdoava e enriquecia.
Tateando paredes chegou ao tal templo.
Gritavam. Enlouqueciam.
O capeta se contorcia em algum lugar,
Uns berravam e aplaudiam,
Mas sem dinheiro nada seria possível.
Que dinheiro eu tenho? Piada de Deus?

"- Carrasco! Pra que me dar falsas esperanças?"

Evadiu dali com a renovada falta de fé de sempre.
Nada novo na vida. Nem vida tinha.

Era tão desgraçado que nem conseguia morrer.
Nem de fome, nem de doença.
Nem de solidão.

Os dentes pulavam da sua boca apodrecida,
Suas mãos trêmulas encontravam no lixo de tudo um pouco,
Até o alento do álcool
Lixo rico.

Viveu feito animal. Apagado pela distância humana, regida pelos status e condições.
Não se ressentiu de nada,
Ninguém lhe ofendeu, nem amou.
Ninguém partiu seu coração.
Ninguém o viu passando.
Ninguém. Ninguém se importou.

Sua cegueira não viu ninguém.
A cegueira humana não o enxergou.

Numa madrugada misericordiosa
Deus mandou o frio salvador.
Partiu congelado embaixo da ponte.
Duro. Esquecido. Silencioso.

No noticiário ficou importante
Mendigo cego e coxo ganhou fama e até um nome,
Homenagem póstuma e manifestação.

Ganhou faixa, flores embaixo da ponte,
Ganhou tudo o que nunca teve.
Até compaixão.

Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 04/03/2022
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários