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Cyntia Pinheiro
Uma mulher subiu na mesa do bar e fez da saia um disco voador
Textos
Ernestina
A menina nasceu em um dia acetinado. Seu berço era flor de cosmos, lhe mentindo um pouco a vida. Logo a mãe cessou de existir. A vida foi entortando, descadeirada. Os irmãos se foram um a um viver lugares ásperos e sumidos. O pai não lhe era. Então acostumou-se às funduras existenciais até encontrar-se moça.
Embrenhou-se no serviço da mangaba, na carência de ser e possuir. Botava a lega e o trisco no cofo, abotoava a alpercata de três pontos, colhia o látex da mangaba riscada em um copo de flandres e ia despejando no tacho para o cozimento. Ao esfriar, pisava o látex até virar uma manta de borracha que era o ponto de ser vendida. Ganhava um conto por dia. Era serviço demais e pouco valor.
Ouviu oportunidades na cidade. Foi ter com uma que lhe dava de pisar arroz para um casamento. Estava com 22 anos e não tendo repense algum, intuiu de ficar. Ali tinha alegrias  miúdas, no trabalho ardido e sem pecúnia. Era de ganhar mais, ganhando ternuras e dois vestidos por ano, um no São João, outro no Natal. Chegava! Não alimentava filáucia.
Desempenhava de cozinhar na beirada do fogão de lenha. Acendia condombá quatro em ponto para que quando a manhã começasse em seus olhos, a barriga da casa já estivesse cheia. Tinha preferências por borboletas alaranjadas, e um aparelhamento interno para o fazimento das coisas. Criou porcos, galinhas, lascou lenha, torrou café, e nunca parou de pisar o arroz. Alimentava um ferro pesado com brasas do fogão e passava a roupa de toda família. Anoitecia às dezessete, para encompridar a largura do escuro.
Teve rasos de amor, e todo mundo nadava nela. Também tinha um fraco para plantas e pessoas. Criava muitos filhos, todos seus, nenhum seu. Não foi nunca desmoçada. Nem bem viu homens que lhe significassem mais que hortensias azuis. Seus cabelos permaneceram no percuso inteiro intocáveis, como no útero.
Rezava como se carecesse, pois se era santa, tinha reputação com Deus. Não fez uso dela, permanecia esperando a graça e a achava nos amplos. Também tinha parte com Nossa Senhora. Todo maio via a menina vestida de anjo coroando a santa, e a menina via as cabecinhas delas, da avó e da madrinha, jogando-lhe ternuras quentes pelos olhinhos sofridos.
Empreendeu bordados, nunca leu. Tinha a cabeça boa para aniversários. Também tinha mão para temperos e cafés. Não gostava de beber água e quis ver o mar quando velha, foi quando usou calças pela primeira vez.
Soube existir. Entendeu a vida. E recebeu na morte, aos noventa e sete anos, a visita de Nossa Senhora. Foi colhida após o “Amém” da última Ave-Maria que rezou.

*A menina que coroou Nossa Senhora homenageia Nesta, sua madrinha e seu amor, que partiu em 11 de setembro de 2022.
Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 27/09/2024
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