A última da professora
Ser professora requer algumas habilidades muito próprias da função, uma delas, pouquíssimo mencionada, é a capacidade de se emocionar com as conquistas de seus alunos. Se tem uma coisa que me enche de orgulho é encontrar, depois de 25 anos de profissão, alguns de meus ex-alunos, sobretudo quando realizaram seus sonhos, se formaram, constituíram família, mudaram de time, se assumiram... Enfim, bom mesmo é ver gente que esteve conosco em um momento da vida, sendo feliz anos mais tarde, levando consigo uma sementinha daquilo que plantamos.
Volta e meia algum aluno me aparece assim de supetão, como foi no dia em que eu voltava da faculdade a noite e minha moto ficou sem gasolina no meio do trânsito. Um rapaz veio correndo no escuro, com mochila nas costas e eu estava apavorada de medo de ser assaltada. Mas ele gentilmente retirou a moto do meio daquela muvuca e se ofereceu para comprar gasolina. Enquanto empurrava a moto até um posto de combustíveis fomos conversando, e ao passar sob a luz de um poste, pude olhar para seu rosto e constatar: Ei, espera aí! Você foi meu aluno!!!
É sempre uma alegria quando isso acontece! E, apesar de todo o constrangimento que eu passo a relatar agora, posso dizer que fiquei também orgulhosa e feliz com o último reencontro.
Vida de professora não é fácil. Nunca foi. E talvez eu me aposente sem que isso mude. Semana passada eu tentei marcar uma consulta de rotina com minha ginecologista e soube que ela havia sido descredenciada pelo Plano de Saúde. Recorri à lista de opções e só encontrei nomes de médicos (no masculino). Isso pra mim é super tranquilo, afinal, são profissionais. Escolhi um nome aleatoriamente e lá fui eu para minha primeira consulta.
Bem, vale dizer que a primeira consulta com qualquer ginecologista é sempre muito detalhada, você precisa responder a perguntas como: Quantos parceiros sexuais você já teve? Como está sua vida sexual hoje? Você tem satisfação nas suas relações sexuais? Já fez sexo anal? Teve abortos? Teve quantos partos? Normal ou cesariana? Como é seu ciclo menstrual? Regular ou irregular? Como é o fluxo? Dura quantos dias? Quais os seus sintomas na TPM? Você toma algum medicamento controlado? Faz uso de bebidas alcóolicas? Já usou algum tipo de droga? E por aí vai... Um monte de perguntas...
Algum problema em respondê-las? Nenhum. Se o médico em questão fosse um completo desconhecido teria sido tranquilíssimo, mas é aí que a coisa fica complicada. O médico que estava na minha frente havia sido meu aluno há cerca de duas décadas e... ele me reconheceu!
Eu queria fugir dali. Queria ir embora sem nem mesmo passar dessa parte da entrevista. Mas ele, super gentil e profissional, foi tentando me deixar à vontade:
- Calma é super normal. Eu atendo a todo tipo de mulheres, já atendi até prostitutas. Uma delas me disse que teve oitenta e quatro parceiros, veja só que número engraçado... De onde ela tirou esses quatro???
Eu ria... ria de nervoso! Eu sei que ele queria ajudar. Sei que ele estava apenas tentando dizer: há mulheres sexualmente bem mais descoladas que você, não precisa ter vergonha de falar sobre isso comigo. Mas eu estava morta de vergonha. Eu queria enfiar a cabeça dentro de um buraco.
Então chegou a hora mais temida:
- Pode ir ali, veste a camisola que está dobrada, por favor.
Eu fui lá, me vesti, ou melhor, me despi, joguei aquela roupinha toda aberta sobre os ombros e fui me deitar. A maca parecia estar coberta de pregos, tamanha tensão eu sentia. Ele veio todo gentil, pedindo milhares de desculpas por precisar me examinar e fez primeiro a apalpação dos seios. Eu permanecia de olhos bem fechados, não tinha coragem de olhar na cara dele.
Depois foi lá pra baixo. Eu estava naquela posição naturalmente humilhante dos consultórios ginecológicos. E só pensava assim: “Meu Deus, se havia algum respeito ou admiração desse rapaz pela sua professora, isso acabou de acabar agora. Que vergonha! Que vergonha!”
Ele examinou com seriedade, disse que estava tudo bem comigo, tudo bonitinho como quem nunca passou por um parto normal, segundo suas palavras. Mas eu não consegui relaxar nem por um minuto.
Pulei da maca e fui me vestir. Acho que eu tremia de nervoso. Mas simulei uma tranquilidade, quis parecer a tiazona descolada, talvez. Voltei rapidinho e esperei ele passar os encaminhamentos para os exames de rotina. Puxei conversa, falei sobre a época em que ele foi meu aluno, descobri que nossa diferença de idade é de apenas quatro anos, e que ele se casou e tem três filhos e ainda se lembra de uma das músicas que ensaiou comigo.
Finalizamos com um abraço e uma foto para o instagram, com recomendações de que a trilha sonora fosse o Astronauta de Mármore. Assim fiz, e postei. Com muito orgulho do aluno que se tornou um excelente médico!
Ao chegar no carro dei tanta gargalhada, porque é isso que eu faço quando fico extremamente nervosa. Fiquei imaginando ele contando para os ex-colegas detalhes sobre meu corpo que pudessem depor contra mim. Mas fui salva pela crença absoluta no sigilo médico-paciente. Embora eu mesma esteja aqui agora contando para vocês!
Ainda não superei a consulta. E já estou imaginando como será o retorno. Torcendo para que ele tenha uma memória ruim. Será?
Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 22/11/2024
Alterado em 22/11/2024