Não quero nada que não pertença a mim
Cometi um crime uma vez. Um crime de furto. Mas eu era criança e creio que esteja perdoada. Nossa casa era separada da casa de vovó Lita por um muro. Nosso quintal com duas mangueiras, um pé de goiaba, dois de laranja e um de araçá era fronteiriço com o galinheiro dela.
Um dia o muro caiu. As galinhas podiam entrar do lado de cá tanto quanto eu podia entrar do lado de lá. Isso facilitava os brinquedos com a primaiada, também agilizava a catação de piolho das tias armadas de veneno e pente fino, e até o acesso ao quartinho que vovó mantinha pra guardar coisas velhas, que ficava no cantinho do galinheiro.
Pois bem, era naquele quartinho que estava a coisa riquíssima que furtei. Sempre sonhei em ser professora. Minhas tias, todas elas, eram. E eu sempre as admirei por isso. Lá naquele quartinho empoeirado havia pilhas e pilhas de cadernos velhos, livros didáticos, caixas de giz com caquinhos, estênceis já usados e restos de cartolinas. As coisas não eram muito aproveitáveis, a maioria estava rasgada e cheia de pó, mas fuçando daqui e dali, aquela pilha que fazia meus olhos brilharem, encontrei um caderno perfeito. As letras redondas e grandes, variando entre tinta vermelha para os títulos e azul para os textos. Um caderno grosso, completo, praticamente novo, de “Planos de Aula”.
Eu fiquei fascinada! A primeira coisa que descobri foi que a professora, dona do caderno, era Maria Aguimar. Quem seria afinal a tal da Maria Aguimar? Uma amiga das minhas tias? Alguém de fora? Mas não, para minha completa estupefação, investigando, descobri que Maria Aguimar era o verdadeiro nome da minha tia Creuza. Eu talvez vivesse uma vida sem saber que “Creuza” era o apelido dela, se não fosse por aquele caderno.
O capricho da tia Creuza encantou-me. Havia planejamentos para quase um ano de atividades de todas as matérias, sempre com o mesmo cabeçalho: Plano de aula – Matéria – Professora – Objetivos - Metodologia –Data. As matérias eu já havia estudado na escola, não era coisa difícil e eu poderia usar o material para brincar de ser professora. Então, furtei! Não sem culpa! Não sem me sentir mal! Por outro lado, se o caderno estava naquela pilha velha, não faria falta a ninguém, então me consolei rápido e o coloquei em uso na mesma tarde.
Minha mãe havia me presenteado com um quadro negro, apagador e giz, porque sabia o quanto eu gostava de dar aulas. Ela nunca soube do caderno, que eu escondi por muito tempo com medo da bronca (talvez o medo maior fosse do confisco). Eu chamava a meninada da rua após a aula para brincar de escolinha. E ensinava de verdade. Dava aula pelo caderno encantador de Tia Creuza. Talvez aquilo tenha despertado em mim um talento. Talvez tenha sido o impulso que me faltava para abraçar a carreira, que em 2025 completou 25 anos.
Ainda me faz mal pensar que furtei alguma coisa. Porque como disse no título desta crônica: não quero nada que não pertença a mim. E não quero mesmo! Já me perdoei pelo meu pequeno delito, até porque era algo jogado fora, que não fez falta a ninguém. Mas hoje, de verdade, não quero nada que não seja meu. Entretanto, o que for meu, eu vou buscar longe! Busco mesmo. Me atrevo! Me arrisco! Sou corajosa! Essa é uma de minhas qualidades, em meio a um oceano de defeitos. Mas o que é do outro, é do outro, e com o outro deve permanecer.
Não quero H no meu nome, inclusive porque aprendi na terapia a importância do nome da gente e o meu não tem H, embora a maioria das pessoas insista em colocar. Mas quero o Y, o que vem em Cyntia e em Cybelle. Sim, sou Cyntia Cybelle, muito prazer, você provavelmente não sabia disso!
Não quero leite no meu chá, nem em coisa nenhuma, porque detesto leite. Não quero dias frios, porque o calor pertence a mim, o frio não. Não quero dinheiro dos outros, mas quero ter um montão dinheiro meu. Não quero batom emprestado, nem roupa dos outros, nem mesmo quero que a inteligência artificial faça as coisas por mim. Isso recuso com veemência! Minha liberdade intelectual não tem preço e não vai ser a máquina que vai substituir minha escrita, nem aqui e nem na China.
Quero tudo o que tenho direito e merecimento. E isso me basta! Não quero sentir inveja porque fulaninho chegou lá, se eu também posso chegar! Não quero ter que fazer as sobrancelhas e as unhas toda semana, nem mesmo ter que aplicar botox no meu rosto a cada três meses. Isso, por enquanto, não combina comigo. Não quero ser obrigada a pintar os cabelos, adoro a cor dos meus e só vou pintá-los se e quando achar que devo. Não quero ficar refém de laser, de juventude eterna, de corpo perfeito, muito menos de salto alto.
Não quero barulho, se eu puder ter silêncio. Nem ter obrigação de cozinhar ou de lavar a louça, se não houver propósito. Mas quero tempo de qualidade com os meus, todos os meus: marido, filhos, pais, sobrinhos, irmãos, tias, primos, amigos! Quero tempo para escrever, ler, assistir coisas que edificam, fazer crochê, aprender coisas novas, desenhar... Quero tanto da vida, porque gosto da vida. Ela exige algumas coisas de mim e eu também mereço exigir dela: Os reconhecimentos que nos dignificam. As honrarias que nos envaidecem. O dinheiro farto que nos dá propósito. São coisas que eu quero. Mentiria se dissesse que não. E mentir não é algo que pertença a mim.
O caderno, o tão lindo caderno da tia Creuza, me fez seguir um caminho. Sou professora por amor e tenho orgulho disso. Mas sou bem mais que uma professora, sou alguém que faz e que sonha, alguém que até hoje se sente mal por ter pego algo que não lhe pertencia. Entretanto, aprendi com isso a ser alguém melhor.
O que eu quero da vida é só o que é meu, e sabe o que é meu de verdade e que eu não vou largar nunca? O desejo de evoluir. Um dia eu chego lá! E você também pode!
Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 22/06/2025