Saudosa infância
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No dia da faxina eu saía do corpo, era uma projeção extrafísica consciente. Vi Nelma carregando o sofazinho individual no colo, para lavar a sala. Acordei e pimba(!), quando saí do quarto aquela cena foi a primeira que eu vi. Igual. Exatamente igual ao sonho.
Eu viajava tanto, que a realidade se confundia com o reino governado por Morpheus. Pensava que podia voar também quando estivesse acordada. Ainda me lembro da sensação de dar um impulso nos pés e sair planando por aí. Era criança. Tinha muita imaginação, mas eu voava. Sim, voava. Nunca mais voei, desde que passei à próxima fase no jogo da vida. Mas me lembro e sinto tudinho. O vento nos cabelos, as pessoas feito formiguinhas lá embaixo, a velocidade e a capacidade de estar em muitos lugares. Era mágico!
Não tenho mais a mesma capacidade de sair do corpo de forma consciente. E quando saio, não lembro. E quando lembro, nem sempre é bom. Perdi o contato com a infância. Virei mulher.
Hoje meu marido estava triste. Recebemos um convite de aniversário que o deixou triste. Sim, a ocasião é festiva. Estamos felizes com a amiga que vai celebrar e celebraremos com ela. O problema foi dar-nos conta de que nossos amigos já estão fazendo cinquenta anos. Em breve seremos nós, se sobrevivermos até lá. Convenhamos que ainda faltam três anos. Mas o saudosismo em relação à infância bateu forte.
A gente vivia solto. Eu pulava o muro para brincar com a primaiada na casa de vovó Lita todas as tardes. Sovertia no mundo de bicicleta e passava o dia subindo nas árvores da casa de mãe Lorde. Nas férias, no último dia de aula, chegávamos da escola mais cedo e minha primeira providência era pegar as menores panelas da cozinha de minha mãe e correr para a casa de Flávia Núbia, minha melhor amiga. Passávamos uma boa quantidade de sabão em barra no fundo das panelas, para elas não empretarem de picumã. Levávamos arroz, tempero, alguma verdurinha e carne, e brincávamos de cozinhadinha, num fogãozinho feito de tijolos e gravetos.
Um pé de pequi às vezes nos brindava com um arroz amarelinho. Um pé de umbu ou seriguela nos deitava para a sesta, além de nos dar as melhores sobremesas. Eita que viver ali era bom! O quintal de Anísio e Leni só se separava da imensidão do quintal de Seu Izalino e Dona Elvira por um portãozinho. E a vida se fazia poeticamente, com trilha de passarinhos, nos muitos quintais de nossa infância.
Comer marmelo, jatobá, cagaita; brincar de onça na porta de casa à noite; comer rapadura com farinha, fazer capitão, raspar o prato esmaltado para ver o ramalhete e também para vencer a fome; jogar pedrinhas, dirigir carros imaginários, com embreagem e freio feitos de chinelo revirado; pular corda, elástico e nas costas uns dos outros, só pra ver quem pulava mais alto. Gato preto no fogão, lagarta na laranjeira, mel de jataí em cabaças na cozinha; bolo de lama, paçoca no pilão, cheiro verde, frango na panela preta; biscoito saindo do forno, fogão de lenha, peleja, alegrião; sanfona, traque no São João; festa de maio, cabelo comprido, maçã do amor, quebra-queixo, toicinho e gamela.
Muita infância, muita infância acumulada e expandida, e derramada, e vivida, e encantada. Muita infância pra gente voar na imaginação e enquanto dormia. Era infância que não cabia na gente. Era infância para aqui e acolá. No mundo dos vivos e no mundo dos sonhos. A imaginação transitando pelos dois. Uma infância como deve ser. E eu voava.
Hoje sobrevoo tudo, relembrando, com saudade. A faxina de Nelma, o cheiro de Purcina, a roupa lavada por Lolita, a sopinha de Nesta, as galinhas de dona Dova, a risada de tia Siana, o bordado de Nesta, a cara ranzinza de Dona Fidel, a gargalhada de dona Alita, o cheiro de talco de Mãe Lorde, a buzina do leiteiro, o som da jaqueira, os bancos da praça, a feitura da pamonha, o biscoito de milho na venda de seu Cindo, o urucum secando na lona preta.
Tudo era divertimento. E as saudades voejam pelas ruas Taiobeiranas. Sou espectro viajante, na itinerância da imaginação. Sei que a alma não precisa mais se desprender do corpo, porque é dentro dele que mora a saudade. E a minha é do tamanho do mundo.
Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 01/07/2025