De dia eu repartia os galhos da mangueira com os passarinhos.
Eles ocorriam e se aninhavam, casalzinho em núpcias.
No posterior, concebiam filhotes.
Em embolso, eles me anuiam seu canto e alguma sombra.
Era bom apadrinhar os ovinhos sendo chocados... rachando...
E o inaugural rasante da avezinha, na hora de vencer o vento.
O vento era um muito pra mim.
Eu, que adorava ficar ali amoitada entre os galhos,
Sentindo a brisa me ditar palavras.
Ela era generosa, e às vezes
Soprava em meus ouvidos palavras que eu dessabia,
No mistério do total das coisas.
De noite, a gente se aprumava na varanda para longamirar a lua.
Um dia papai abateu minhas unhas, e logo que olhei para o céu,
Lá estava aquele caquinho de unha no amplo,
Eu nem sabia que unha dava poema. Da lua eu sempre desconfiei.
Mas é que a lua às vezes é feito um caquinho de unha boiando no éter.
Então veio uma estrela e ficou ali do ladinho da minha unha,
Piscou, piscou e eu pensei estar vendo importância naquilo.
Eu pensava em marcianos, mas o que me dava estralos de intuição
Era pensar em palavras que pudessem descrever o insabível.
De dia eu concedia o jardim às borboletas monarca
E elas vinham com suas perninhas açucaradas conseguir
O dulçor das gérberas. Eu achava que a tinta da flor
Pintalgava as asas das borboletas.
Porque de algum modo elas sugavam algo além do néctar.
Ficavam místicas, vinham, aterrissavam em nossos dedos,
Talvez experimentassem nossos químicos, mas para mim,
Elas traziam mesmo era um recado de Deus.
Era Deus falando diretamente com o menino, sobre o instante,
No profundo silêncio alado que embonitava a tarde.
De noite, vovó fazia uma sopa de uma gostosura incopiável,
Um engrossado que atiçava as lombrigas e aglomerava na memória.
Até hoje lembro do gosto e do cheiro de amor que exalava do prato esmaltado.
A lua naquelas noites abandonava a condição de caco de unha,
E ficava gorda feito a gente, na ternura das delícias transmutadas em afeto.
A cebolinha verde temperava as cifras que o violão cuidava de imitar.
Era de pegar, com os dedos em pinça, as notas que escapuliam da língua.
A música vinha fácil, e o grilo acompanhava tudo, com seu arco e violino,
Coisa de muita apropriação tecnológica, instrumento acoplado às asas.
De dia uma fada vinha dar um beijo na ponta do nariz de quem dormitava,
E deixava um cheiro adocicado no quarto.
Era a mãe saindo para os desempenhos da lida.
O galo já havia cantado, o cisco havia sido varrido, o café estava passado,
E o biscoito frito já engostosava a manhã.
Depois da chuva, o sapo se apoderava da bacia de bromélia,
Engolindo os desarranjos das sazões, junto com as moscas.
Pena que aqui sempre choveu pobremente,
E nem grilo, nem sapo se deparavam muito com as gentes.
De noite era a aglomeração da reza, novena de nosso senhor!
No durante era o sistema, no critério de gravidade,
Que menino não dava um chiu.
Mas no depois, ah...
No depois, na hora do biscoito e do chá,
A coisa amolecia tanto, que até o padre graçava.
Meu pai sempre foi bom piadista e fazia um flato
Virar gaitada na boca dos assuntantes.
De dia, ou de noite, a vida era essa coisa mole, mansa, brejeira.
A gente não tinha esse vislumbre da passassão do tempo,
Só ia, no rumo onde a brisa tocasse, sem aflições para o agora.
Mas a borboleta nunca mais avoou do dedo,
O passarinho foi morar do lado de dentro da gente,
E agora é uma murta que faz uma sombrinha pouca no quintal.
O mistério ainda geme no ouvido umas palavras desconsideradas
Por nossa indigência de astúcias.
E a gente intui que é Deus, sempre foi Deus!
Porque se não fosse Deus, ia ser quem?